sábado, 27 de fevereiro de 2010

De repente, o silêncio

Cheiro de terra molhada, ainda batida. Contemplei um horizonte tão belo que prendia o meu olhar, num tempo tão distante que já não podia explicar. Aquela estrada era conhecida, minhas primeiras lembranças eram de lá, e eu tranquei cada uma delas, de acordo com a casa de cada idade. Andava sujeitando-me à sujeira do barro, num momento tão íntimo que considerei sagrado. Ainda pude ver a mamadeira jogada e escutei a canção de ninar. A caminhada será longa, mas extremamente prazerosa.

Pude ver os meus brinquedos espalhados, e tantos objetos que não existem mais. Escutava agora as minhas primeiras palavras, o riso, o choro. Continuava me sujando, integrando-me à minha própria história. As casas tinham um aspecto de desenho animado, e tudo isso me trouxe uma paz e um conforto interior... Inexplicáveis. Vi o berço dando lugar à cama. O copo substituindo a mamadeira. Era uma casa engraçada, onde não se podia entrar. Rabiscada de lápis de cor e traçada na mais tenra inocência. Crianças andavam de bicicleta sob a lua. Continuei subindo, acreditando em cada passo que eu dava. A rua estava mais firme.

Relembrei o primeiro dia de aula, a primeira professora. Uma noite na casa da avó com direito a historinhas e pipocas. A casa agora era de plástico, toda colorida. Esconde-esconde, jogos de tabuleiro e muitos sonhos. Contemplei uma bagunça gostosa. E um cheiro de bolo no ar. De repente, revi o meu primeiro amor e também o primeiro beijo. Que experiência trágica, mas repleta de magia. Quando somos crianças tudo parece ser mais encantado. Continuei subindo a rua, que agora era calçada com paralelepípedos. As casas eram mais novas e extremamente sofisticadas, estava passando pela vizinhança da adolescência.

Cores, formas, tudo muito diferente do convencional. Fui tomado pela curiosidade de espiar pela janela. Muitos amigos com momentos maravilhosos e outras tantas lembranças terríveis. Segredos que nunca contei para ninguém; algumas lembranças até meio perdidas entre o quarto e a sala. Ouvia agora gritos, gargalhadas, guitarras e muitas festas. O clima estava vulnerável.

Os obstáculos aumentavam, os paralelepípedos ficavam cada vez mais pontiagudos e a subida mais íngreme. A terra batida já não fazia diferença. Quando se é adolescente, não se pode parecer criança.

Comecei a sentir um cheiro diferente no ar, que me fez ficar um pouco zonzo. Percebi que passava pela vizinhança da juventude. Estréia na universidade, baladas, bebedeiras e muitos casos pra contar. Amigos que foram e vieram. Pessoas que pensei que marcariam a minha vida para sempre, e não passaram de uma noite. A casa agora era alta, quase inalcançável e eu ouvia centenas de propostas tentadoras. Tempo de descobertas e aventuras.

A subida ficou mais complicada, as responsabilidades aumentavam continuamente, assim como os problemas. As casas já não eram tão alegres e o meu tempo já não era tão simples; a tecnologia invadia o espaço e todo o meu conteúdo já cabia na memória de um computador. Ao som de buzinas, processadores, relógios e secretárias eletrônicas, eu continuava subindo, já nem com tanto prazer, nem com tanta força, nem com a mesma vontade de lembrar.

A rua agora é de asfalto. Sentia-me ofegante, stressado, desejoso por descer a ladeira, e não mais subir. Já olhava a terra batida com uma saudade imensa. Todos aqueles brinquedos espalhados, a proteção, as canções e o ambiente sereno, o colo. Refleti sobre a minha adolescência, experiências novas, a emoção de dirigir pela primeira vez. Ainda havia novidades excitantes; por que mesmo eu quis crescer? Eu só queria que tudo passasse bem rápido, para que eu não tivesse que dar satisfação da minha vida pra ninguém. Naquela época eu não soube dar valor à terra batida e o asfalto tornou-se a minha ambição. Tudo isso me assustava muito. Memórias que me invadiram. Sentia-me no fim, no ar.

Olhava cada casa e via a minha imagem refletida, tantas memórias e saudades. Sou resultado de cada momento vivido. Cada casa. Cada calçamento. Cada som. Cada não. Muitas páginas viradas, muitas lições apreendidas. Consigo olhar pra trás e ver que fui um idealizador de circunstâncias nesse caminho que trilhei. E que até os mal presságios e os pedaços árduos valeram a pena com o tempo, porque eles não voltaram.

Passa, depressa, cresce, muda e eu já não tenho controle. O início deixa de ser início e vai chegando o meio, aí percebo que já estou no fim. Aos poucos fui me interpretando e percebi que o peso nas costas apontavam uma certa idade. Nostalgia. A casa que estou agora começa a desabar.

Só respiro lembranças. Os meus olhos vêem as mesmas coisas todos os dias. Páginas preenchidas. Quero reunir minhas forças para correr por essa estrada, pra sair desse mesmo lugar. Quem sabe me atirar de um penhasco? Ser livre e conhecer o infinito, sem medo de cair. O ponteiro está querendo me enganar, para que eu não consiga saber onde estou, nem quando estou.

Não vejo mais um começo e um fim.

E acabou-se a estrada.

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